Pandemia, Justiça e eficiência fiscal

Aferição da eficiência que conduz a um sistema ótimo envolve certa dose de subjetividade .

Estamos vivendo um momento ímpar em nossas existências. Procurando sobreviver a uma crise de saúde e econômica. A palavra de ordem é solidariedade. Não é diferente no âmbito da tributação. Não tenho dúvidas de que o Direito Tributário é um eficiente instrumento em prol da solidariedade social. Em um Estado Social, como é o brasileiro, a tributação tem reflexos intensos sobre o bem-estar da comunidade. Neste momento de dificuldade extrema, é preciso enxergar a tributação sob um viés humanitário, buscando soluções que tranquilizem pessoas naturais e jurídicas.

É certo que o Estado vem adotando providências muito positivas em matéria tributária para arrefecer os problemas que estamos vivendo. Nos últimos dias, foram editadas várias medidas que alcançam a coletividade como um todo, entre elas a moratória do FGTS, a do Simples Nacional, a relativa às contribuições sociais e previdenciárias, além da ampliação do prazo para cumprimento de obrigações acessórias e a redução da carga tributária do Imposto de Importação para produtos necessários ao combate da COVID, do Imposto sobre Produtos Industrializados para desinfetantes, álcool e produtos similares, do IOF sobre operações de crédito e das contribuições para o Sistema S.

São medidas importantes e tendentes a mitigar as consequências da pandemia, mas não são o bastante. É certo que tais tributos deverão ser pagos em algum momento. Será que estaremos preparados para tanto quando este momento chegar? De fato, o Estado depende de recursos para fazer frente aos elevados custos com os quais está tendo que arcar, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio e reduzir, ainda que acanhadamente, a carga tributária. A moratória no âmbito federal não basta!

É fato que as escolhas feitas por autoridades fiscais e, também, pelos agentes da iniciativa privada não são fáceis. A arrecadação eficiente neste momento é fundamental para fazer frente aos custos decorrentes da pandemia, mas não se pode deixar de lado o propósito de se estabelecer de um sistema tributário justo. No entanto, o que é justo em um momento em que vigora um Estado de Calamidade Pública? Um Estado fiscalmente justo em um momento pandêmico é o mesmo Estado fiscalmente justo em um momento de normalidade? E ainda, é possível aferir a eficiência do sistema em um estado de crise, valendo-se dos mesmos pressupostos de que nos valemos em um momento de normalidade?

As respostas não são simples nem fáceis, mas estou certa de que justiça e eficiência fiscal não têm o mesmo significado e abrangência hoje que tinham há 60 dias.  Em face de tal premissa, surge uma terceira indagação. A neutralidade fiscal, como forma de garantir o equilíbrio econômico e a não afetação dos preços pelas decisões tomadas nas esferas pública e privada, é factível em momentos de crise, como este pelo qual passamos?

É certo que todas estas perguntas podem ser solucionadas a partir da análise da política fiscal que vem sendo adotada e esta foi claramente ajustada para o momento de crise.

É nítido que o Estado, sem renunciar às receitas, postergou o pagamento de tributos para imprimir maior eficiência no auxílio às empresas, fortemente atingidas pela crise; estabeleceu medidas de controle da tributação, como as isenções relativas aos produtos  e serviços relacionados ao controle da pandemia; mas deixou de lado a perspectiva redistributiva da tributação, que é um dos vieses da justiça fiscal. Tal circunstância se deve, certamente, a uma mudança provisória de valores.

No momento, o Estado busca a realização da justiça social não por meio da justiça fiscal por meio da progressividade, mas com a adoção de medidas de transferência de renda, como a concessão de subsídios aos trabalhadores informais e a complementação salarial nas hipóteses de redução da jornada de trabalho.

Não acreditamos que a atividade hermenêutica em matéria tributária deva se nortear apenas pelos efeitos econômicos das normas – já que, para as ciências econômicas, o que é relevante é uma arrecadação eficiente –, mas deve ser jurídica e, neste sentido, investigar, além da eficiência, a justiça das normas, ou, ao menos, em que medida sua aplicação desencadeará um estado de justiça e de bem-estar social.

O conceito de justiça não é unívoco nem preciso, podendo ser individual ou geral, mas é certo que muda conforme o momento histórico e as condições sociais, e é essa matriz que deve nortear hoje a atuação do Estado Fiscal.

É fato, no entanto, que o conceito de justiça nas atuais circunstâncias envolve a ideia de equidade, de igualdade de direitos de todos os atores envolvidos na crise, e a justiça está relacionada à ideia de eficiência e de um sistema tributário ótimo, qual seja aquele que, sem deixar de arrecadar, atenderá também às consequências decorrentes da crise econômica, ao drama dos menos favorecidos e à redução de fluxo de caixa do setor empresarial e das sociedades prestadoras de serviços, assim como o dos empresários e prestadores de serviços individuais. No entanto, o que é considerado ótimo hoje, posto que eficiente, não é o mesmo que era assim considerado antes de sermos alcançados pela pandemia.

A aferição da eficiência que conduz a um sistema ótimo envolve certa dose de subjetividade e sempre impõe uma comparação entre dois momentos ou duas situações.

Certamente aferir a eficiência das medidas tributárias adotadas pelo governo como forma de mitigar os efeitos da pandemia é uma tarefa desafiadora, até porque o intervalo de tempo em que tal medida deve ser realizada é curto. De qualquer maneira, é necessário adotar um critério de eficiência, que, segundo penso, deva ser o da utilidade das medidas para a maximização do bem-estar social.

Elas estão sendo úteis para socorrer aos empreendedores? E os trabalhadores? Parece-me que, em certa medida, estão; mas como essa é uma situação excepcional e única no último século, não há como estabelecer uma comparação com outra(s) de mesma natureza e, assim, torna-se difícil concluir qual o seu nível de eficiência e qualidade.

O que me parece certo é que é melhor com elas do que sem elas. Elas, as medidas adotadas, seguramente incrementam o estado de bem-estar social, embora não sejam o bastante, e se assim o são, não são justas também.

BETINA TREIGER GRUPENMACHER – Advogada. Professora de Direito Tributário da UFPR. Doutora pela UFPR. Pós-Doutora pela Universidade de Lisboa e Visiting Scholar pela Universidade de Miami. Conselheira do WIT – Women in Tax Brazil.

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