A imunidade das entidades filantrópicas às contribuições previdenciárias e o STF

Publicado no portal Conjur no dia 27/03/2020
por Betina Treiger Grunpenmacher

Após mais de 20 anos em discussão no Poder Judiciário, a imunidade das entidades assistenciais às contribuições previdenciárias foi decidida pelo Supremo Tribunal Federal, em 23 de fevereiro de 2017, oportunidade em que, por maioria de votos, fixou, nos seguintes termos, a tese relativa ao tema 32 de repercussão geral (RE 566.622): “Os requisitos para o gozo de imunidade hão de estar previstos em lei complementar”.

Dada a similaridade dos temas, na mesma sessão, o STF julgou as ADIs 2.028, 2.036, 2.621 e 2.228, convertidas em ADPFs, e declarou a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 4º, 5º e 7º da Lei 9.732/98, que modificaram o artigo 55 da Lei 8.212/91.

Após a publicação do acórdão, a União interpôs embargos de declaração em razão de suposta obscuridade no julgado, alegando não ter ficado claro se os requisitos previstos no artigo 55 da Lei 8.212/91, na forma disposta na redação anterior à Lei 9.732/98, permaneceriam ou não válidos e eficazes. No mesmo recurso, a União criticou a tese fixada, por entender que determinou genericamente que os requisitos para o gozo da imunidade deveriam estar previstos em lei complementar.

Em 18 de dezembro de 2019, os referidos embargos foram julgados, tendo o STF manifestado o entendimento quanto à “(…) constitucionalidade do artigo 55, II, da Lei 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo artigo 5º da Lei 9.429/1996 e pelo artigo 3º da Medida Provisória 2.187-13/2001” e, ainda, conferiu nova redação à tese em questão nos seguintes termos: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas”.

Acreditamos que a “nova” redação dada à tese em nada altera aquela fixada em 23 de fevereiro de 2017, qual seja, a de que as condições para gozo da imunidade devem estar previstas em lei complementar, afinal, a nova redação reafirma que a utilização de tal instrumento normativo é a forma exigível para fixação dos requisitos necessários à fruição da imunidade, aos quais denomina, agora, de contrapartidas.

No entanto há quem entenda que a “nova” tese reconheceu a necessidade de que as entidades assistenciais possuam o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas), previsto no artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91 – para que façam jus à imunidade. Tal exigência é, em tudo e por tudo, um contrassenso, uma vez que não há, de forma expressa, tal previsão no texto da referida tese, e, ainda, porque, nos termos do disposto no artigo 146, inciso II[1], da Constituição Federal, cabe à lei complementar regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, entre as quais se inserem as imunidades.

Sendo certo que a norma estampada no artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição Federal, veicula uma imunidade, deve ser regulada exclusivamente por lei complementar, nunca por lei ordinária, com é o caso da Lei 8.212/91 e das leis que a alteraram.

Assim, não havendo lei complementar específica que regule a matéria, aplica-se a regra geral, qual seja, a disposta no artigo 14[2] do Código Tributário Nacional com a redação que lhe deu a LC 104/2001, que prevê apenas três requisitos para gozo da referida imunidade: não distribuição de lucros, aplicar integralmente no país os recursos, manutenção de escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de exatidão.

Destaque-se ainda que a Lei 8.212/91, e também as que a alteraram, são leis ordinárias e ainda que seja reconhecida a sua constitucionalidade, as regras por elas veiculadas, entre as quais está a previsão da obtenção do Cebas (artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91), se aplicam apenas ao reconhecimento de isenção, nunca de imunidade.

Com o devido respeito aos que entendem que a “nova” tese impõe a obtenção do Cebas para fruição da imunidade em questão, pensamos que a referida tese apenas reafirma que os requisitos para fruição da imunidade devem estar previstos em Lei Complementar, o que está em harmonia com o disposto no artigo 146, inciso II da Constituição Federal.

A conclusão em questão deve-se ao fato de que alguns dos Ministros registaram em seus votos a possibilidade de a lei ordinária impor requisitos para fruição da imunidade. A ministra Rosa Weber inaugurou a divergência em relação ao voto do ministro Marco Aurélio, que rejeitou os embargos da União, e o fez nos seguintes termos:

Acolher os embargos de declaração para, sanando os vícios identificados, i) assentar a constitucionalidade do artigo 55, II, da Lei 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo artigo 5º da Lei 9.429/1996 e pelo artigo 3º da Medida Provisória 2.187-13/2001; e ii) a fim de evitar ambiguidades, conferir à tese relativa ao tema 32 da repercussão geral a seguinte formulação: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, parágrafo 7º, da Constituição, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas.

O ministro Alexandre de Moraes, após relembrar que houve uma aparente contradição entre os julgados do mesmo tema (RE e ADIs), afirmou que:

(…) Já adiantando que acompanho integralmente sua excelência (ministra Rosa Weber) porque o resultado da votação realmente me parece ter sido no sentido proposto pelo ministro Teori, que era o relator original. Ou seja, a possibilidade da lei ordinária regulamentar questões meramente procedimentais, relacionadas a certificação, fiscalização e controle das entidades beneficentes de assistência social, tudo com o escopo de verificar o efetivo cumprimento dos objetivos expostos no artigo 203. Em outras palavras, em relação a certificação, fiscalização e controle não há reserva legal da lei complementar, não há a necessidade de lei complementar. Com essas rápidas considerações, acompanho integralmente em ambos os Embargos o voto da ministra Rosa Weber.

Também o ministro Roberto Barroso afirmou:

Também eu estou votando na linha da ministra Rosa Weber para reconhecer a aparente contradição, considerar constitucional o Cebas, e reafirmar (porque eu não mudei de opinião) o entendimento de que os aspectos procedimentais das imunidades podem estar previstos em leis ordinárias, enquanto que os que estabelecem condições para a fruição material da imunidade é que devem estar previstos em lei complementar. Portanto eu estou igualmente dando provimento aos embargos em todos os feitos, na linha proposta pela ministra Rosa Weber, apenas deixando claro que uma coisa é procedimento e outra é exigência material, e nessa linha eu considero que o Cebas é válido, e, portanto, estou acompanhando o voto da ministra Rosa Weber.

Ainda o ministro Ricardo Lewandowski registrou: “(…) Verifico que faço uma distinção entre aquilo que diz respeito à imunidade e o que trata de aspectos procedimentais, nesse aspecto eu também entendo que basta lei ordinária.”

Ousamos discordar dos ilustres ministros porque imunidade é imunidade e qualquer que seja a limitação imposta à sua fruição só poderá ser veiculada por meio de lei complementar.

Ainda, embora o registro feito por eles quanto à possibilidade de a lei ordinária estabelecer “requisitos procedimentais” para concessão da referida imunidade, não foi este o entendimento que restou refletido na tese, que manteve a exigência de lei complementar para tal propósito. A ministra Rosa Weber em seu voto apenas reconhece a constitucionalidade do artigo 55, inciso II, da Lei 8.212/91, sem referir à imunidade em questão.

Com efeito, ao tratar do artigo 14 do CTN, Paulo de Barros Carvalho afirma que:

São as únicas exigências para o enquadramento no preceito imunizante, não podendo o legislador ou mesmo o intérprete, por meio de simples lei ordinária, modificá-los. Desse modo, somente configuram requisitos imprescindíveis para reconhecimento da imunidade tributária das instituições educacionais: (a) inexistência de finalidade lucrativa, comprovada pela não-distribuição de lucros; (b) integral aplicação de recursos no País, na manutenção dos objetivos institucionais; e (c) escrituração das receitas e despesas.[3]

Parece-nos, então, que o entendimento dos ministros é consequencialista e, possivelmente, se deve à preocupação de que a dispensa do Cebas poderia ter como consequência fraudes tendentes à redução da carga tributária.

Definitivamente não se pode atribuir tratamento igualitário a bons e maus contribuintes, especialmente quando para tanto se sacrificam normas constitucionais.

A imunidade conferida às entidades assistenciais, em relação às contribuições previdenciárias, busca suprir a ineficiência do poder público na área assistencial. Não se pode mitigar um direito constitucional com status de cláusula pétrea para prevenir um agir em desconformidade com a lei por parte de tais entidades. Até porque, a concessão do Cebas é fruto, a depender da natureza da instituição, de uma decisão política – do Ministério da Educação, do Ministério da Saúde, ou do Ministério do Desenvolvimento Social –, à qual não se pode submeter uma garantia constitucional.

Não por outro motivo que o artigo 14 do CTN em seu parágrafo 1º prevê que a imunidade poderá ser suspensa caso a entidade deixe de atender aos requisitos previstos nos incisos I, II e III.

Em tal entendimento o STF se antecipa à fraude, impondo a necessidade de observância de um requisito que não está previsto em Lei Complementar nem mesmo na Constituição Federal.

Procedimental ou não qualquer que seja a limitação imposta a uma imunidade constitucional, é indiscutível que esta somente poderá ser imposta por meio de Lei Complementar.

[1] Art. 146. Cabe à lei complementar:

I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

(…)

[2] Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:

I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação dada pela Lcp nº 104, de 2001)

II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;

III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

§ 1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do artigo 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Imunidades Condicionadas e Suspensão de Imunidades: Análise dos requisitos do artigo 14 do CTN impostos às instituições de educação sem fins lucrativos. Revista de Direito Tributário n.º 99, p. 14.

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