Tributação do ato cooperativo: um tema ainda polêmico

Publicado no portal JOTA no dia 24/01/2019
por Betina Treiger Grunpenmacher
Estaria a Justiça reduzindo o benefício garantido às cooperativas, e, assim, enfraquecendo o modelo?

Não é recente a polêmica quanto à extensão e ao conteúdo da regra contida no artigo 146, inciso III, alínea “c” da Constituição Federal, que atribui à lei complementar a disciplina relativa à instituição do “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo, praticado pelas sociedades cooperativas”.

O tema não está, no entanto, solucionado, seja no que diz respeito à definição de ato cooperativo, seja no que concerne à natureza do “adequado tratamento tributário” que lhe deve ser dispensado. A polêmica se funda na indeterminação e abertura da referida norma constitucional, o que decorre de sua alta carga valorativa.

O cooperativismo está, é certo, envolto em valores como solidariedade, ética, democracia, liberdade, igualdade, entre outros, o que se conclui a partir da interpretação sistemática dos artigos 1º, inciso IV; 3º; 5º, inciso XVIII; 146, inciso III, alínea “c”; 170; 174, §2º, 3º e 4º; e 187 da Constituição Federal, que disciplinam o cooperativismo.

O constituinte, em harmonia e coerência com o disposto no artigo 3º da Constituição Federal – onde restou consignado o propósito de construção de uma sociedade livre justa e solidária –, previu um regime jurídico especial ao cooperativismo, inclusive e sobretudo em matéria tributária.

O cooperativismo é uma modalidade de economia solidária cujos filiados unem esforços para a consecução de um objetivo comum e semfinalidade lucrativa.

A cooperativa trabalha pelo custo, as sobras são redistribuídas depois de uma parte de sua arrecadação ser destinada ao Fundo de Reserva e ao Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social, o FATES. Os recursos que ingressam no Fundo de Reserva visam reparar perdas e fazer frente aos custos com o desempenho das atividades da sociedade cooperativa, enquanto o FATES destina-se à assistência dos associados.

Quanto à sua tributação, lamentavelmente o artigo 146, inciso III, alínea “c” não veicula uma imunidade, no entanto, contém regra de não incidência que, a exemplo das regras imunitórias, propaga direitos subjetivos, em razão do que há de ser interpretada ampla e analogicamente, segundo os pressupostos e valores que lhe foram reservados pelo texto constitucional.

Ocorre, no entanto, que não é o que se observa nas recentes decisões judiciais que têm enfrentado a matéria, as quais, na sua quase totalidade, com divergências pontuais, interpretam restritivamente a norma em questão e, com isso, mitigam o benefício constitucional, desestimulando, enfraquecendo e comprometendo o desenvolvimento de atividades essencialmente cooperativas.

Faz-se necessário destacar que o constituinte não distinguiu os atos cooperativos em típicos e atípicos, tal distinção é fruto de construção jurisprudencial realizada a partir da interpretação do disposto no artigo 79 da Lei nº 5.764/71, que define o ato cooperativo como sendo aquele praticado entre cooperado e cooperativas, entre estas e aqueles e entre as cooperativas, sem, no entanto, fazer qualquer referência à sua tipicidade ou atipicidade.

O tema merece breve reflexão. Primeiramente, a referida lei data de 1971, momento em que o cooperativismo tinha abrangência significativamente mais restrita do que aquela que tem hoje, e é anterior à promulgação da Constituição Federal em 1988. Ou seja, a definição veiculada pelo referido artigo 79 há de ser interpretada em conformidade com o conceito constitucional de ato cooperativo, consagrado no texto constitucional, de forma que se possa se admitir a recepção, ainda que parcial, do mencionado dispositivo legal.

Conforme leciona o autor português Jorge Miranda, “A interpretação conforme à Constituição não consiste tanto em escolher, entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito, o que seja mais conforme com a Constituição quanto em discernir no limite – na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, conquanto não aparente ou não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental. E são diversas as vias que, para tanto, se seguem e diversos os resultados a que se chega: desde a interpretação extensiva ou restritiva à redução (eliminando os elementos inconstitucionais do preceito ou do acto) e, porventura, à conversão (configurando o acto sob a veste de outro tipo constitucional)”.1

É necessário esclarecer que conceito não é o mesmo que definição. Conceito é a compreensão que alguém tem de uma palavra ou ideia e definição é a operação linguística que estabelece com precisão os elementos do conceito. Assim, o conceito de ato cooperado é constitucional e, embora não seja papel do legislador criar definições, quando o faz deve respeitar o respectivo conceito constitucional, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Em face de todas as regras constitucionais que disciplinam a atividade cooperativa e, também, do disposto no artigo 146 da Constituição Federal, ato cooperativo é todo aquele do qual a cooperativa participa, inclusive aqueles praticados entre as cooperativas e terceiros, classificados pela jurisprudência como “atos atípicos” a todos se aplicando o “adequado tratamento tributário”.

Definitivamente, o constituinte não distinguiu os atos cooperativos em típicos e atípicos e se não o fez não cabe ao legislador ou ao intérprete fazê-lo, com o propósito de restringir a extensão de benefício fiscal que lhes foi constitucionalmente atribuído. Assim, a regra contida no artigo 79 da Lei nº 5.764/71 há de ser interpretada em conformidade com a Constituição Federal, de maneira que contemple, na condição de cooperativos, inclusive os atos praticados com terceiros. Tal interpretação é a única consentânea com o regime jurídico constitucional das cooperativas, uma vez que a sua função essencial é captar contratos remunerados para os cooperados. Ora, se a cooperativa tem como principal função granjear trabalho aos cooperados, como não considerar os atos tendentes a tal propósito como sendo atos cooperativos? É um total sem sentido.

Assim, “típico” ou “atípico” o ato é cooperado e nessa condição deve ser destinatário de um tratamento tributário favorecido.

No que concerne à natureza e extensão do tratamento tributário benéfico que deve ser dispensado ao ato cooperativo, embora a inexistência da previsão expressa de imunidade, exceto no que concerne aos impostos reais, eles são intributáveis, em razão da ausência de manifestação de capacidade contributiva.

Como dito, as cooperativas trabalham pelo custo e, por isso, institucionalmente, não revelam riqueza passível de tributação, o que, por amor à lógica, deve resultar na sua intributabilidade. O texto constitucional consagra, portanto, direito subjetivo à não incidência tributária em relação aos atos cooperativos e, nesse sentido, enquanto a lei complementar não contemplar tal previsão, as leis ordinárias deverão fazê-lo.

Por outro lado, ainda que tal não ocorra, ou seja, ainda que não haja previsão legal de um tratamento favorecido ao ato cooperativo (típico ou atípico), é possível reconhecer a sua imunidade implícita em razão da ausência de capacidade contributiva. A interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais citados, que disciplinam o cooperativismo, agregada à ausência de capacidade contributiva do ato cooperativo, autoriza tal conclusão.

O tema foi afetado à repercussão geral pelo Ministro Dias Toffoli que, ao registrar a preocupação com uma “tese minimalista” em relação à tributação do ato cooperativo, propôs a seguinte tese para o tema 323:“A receita ou o faturamento auferidos pelas Cooperativas de Trabalho decorrentes dos atos (negócios jurídicos) firmados com terceiros se inserem na materialidade da contribuição ao PIS/PASEP”. Embora seja acertada a preocupação do Ministro com relação à dimensão a ser atribuída à tributação do ato cooperativo, a tese é, em si, minimalista eis que afasta do tratamento tributário favorecido os negócios jurídicos firmados com terceiros, o que é um dos objetos da atividade cooperativa, se não o principal, para algumas espécies de cooperativas.

O adequado tratamento tributário do ato cooperativo será analisado ainda no âmbito de recurso de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, afetado à repercussão geral (tema 536), oportunidade em que, a partir de uma interpretação conforme, poderá ser atribuído ao artigo 79 da Lei nº 5.764/71 o seu efetivo sentido em conformidade com o texto constitucional.

Cooperativa é sinônimo de solidariedade; um dos valores mais caros que o constituinte quis proteger e incentivar, e que está em crise na atualidade e é em razão destes valores que lhes deve ser dispensado o adequado tratamento tributário.

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1 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II: Introdução à teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1988. p. 233.

BETINA TREIGER GRUPENMACHER – Advogada. Professora de Direito Tributário da UFPR. Pós-Doutora pela Universidade de Lisboa. Doutora em Direito Tributário pela UFPR.

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